A intervenção dos Tribunais Administrativos justifica-se se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas.
II - Não obstante as entidades concessionárias sejam entidades privadas, se são chamadas a colaborar com a Administração Pública na concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, fazem-no na execução de tarefas administrativas, mediante a prévia celebração de um contrato administrativo, tendo consequentemente a respectiva actividade regulada e submetida a disposições e princípios de direito administrativo.
III - Daqui resulta a competência da jurisdição administrativa para conhecer de um pedido indemnizatório formulado contra uma sociedade privada, concessionária de uma auto-estrada, por danos materiais resultantes de um acidente de viação ocorrido na via concessionada, quando o sinistro foi alegadamente provocado por ter havido omissão de deveres decorrentes do contrato de concessão celebrado com a Administração, nos termos da alínea i) do artigo 4º do ETAF.
Em suma:
O A. intentou acção com processo comum contra B, concessionária SA, pede a condenação em danos patrimoniais e não patrimoniais pela privação do uso do veículo, acrescida de juros desde a citação até efectivo e integral pagamento.
Alegou:
- que foi vítima de um acidente de viação ocorrido no dia 10 de Maio de 2013 pelas 21, 45 na auto-estrada ……, da qual a Ré é concessionária (pelo Estado português) por onde circulava com a sua viatura, em virtude de a via se encontrar em manutenção com três barreiras (new jersey móveis) tombadas na sua hemifaixa de circulação, sendo a Ré responsável pela ocorrência.
-A Ré, B……………., SA, apresentou contestação onde entende ser o presente litígio da competência exclusiva da jurisdição administrativa, sendo o Tribunal Judicial de Mirandela materialmente incompetente.
Proferido despacho saneador que decidiu julgar improcedente a excepção da incompetência material invocada pela ré B……………, SA.
Inconformada , veio a Ré B……………, SA, interpor recurso de Apelação o qual veio a ser julgado procedente com a consequente revogação da decisão recorrida, e a atribuição da competência material aos Tribunais administrativos para conhecer do objecto em litígio.
-Não se conformando, o Autor para este recorre agora para oTribunal de Conflitos, apresentando as seguintes conclusões:
- A presente acção intentada contra a Ré B…………, S.A., assenta num acidente de viação ocorrido ao Km 140,100 da auto-estrada …. (…………).
- O acidente ficou a dever-se ao aparecimento inopinado de barreiras sinalizadoras em plena faixa de rodagem e fora do local onde deveriam estar, facto esse decorrente da omissão por parte da demandada dos seus deveres de fiscalização e manutenção da via em bom estado de modo a não fazer perigar os seus utentes.
- A Ré é concessionária do Estado para a construção, conservação e exploração de auto estradas, designadamente daquela onde ocorreu este acidente, pelo que lhe incumbe a actividade de vigiar, guardar, reparar e conservar as faixas de rodagem em bom estado de modo a evitar acidentes.
- Nos casos de concessão rodoviária, apenas é transferida para a concessionária a gestão e administração directa da auto-estrada, mantendo o Estado a propriedade dessa via rodoviária, tal como decorre do respectivo contrato de concessão e, sendo a Ré uma pessoa colectiva de direito privado está-se perante uma concessão a uma entidade de direito privado.
- De acordo com o disposto no art. 1º, nº 5 da Lei 67/2007, de 31 Dezembro (Lei Reguladora da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas), que contém princípios idênticos aos vertidos no art. 4º, nº 1 do ETAF, a actividade administrativa depende da prática de acções ou omissões adoptadas no exercício de prorrogativas de poder público e que essas actuações sejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
- Já quando se não esteja perante o desempenho de tarefas públicas e que não sejam reguladas por princípios de direito administrativo, então estamos no âmbito do direito privado, radicando a competência para dirimir os conflitos daí decorrentes na jurisdição civil.
- Uma vez que, na perspectiva do demandante, este acidente se ficou a dever ao aparecimento inopinado de barreiras sinalizadoras em plena faixa de rodagem e fora do local onde deveriam estar, facto esse decorrente da omissão por parte da demandada dos seus deveres de fiscalização e manutenção da via em bom estado de modo a não fazer perigar os seus utentes, ao cometer esta omissão a ré não está munida de qualquer ius imperii, antes pratica actos que se enquadram no seu objecto social enquanto pessoa colectiva de direito privado que é.
- Pelo que o ilícito que é imputado à Ré e pelo qual é demandada nesta acção se insere nos actos correntes da sua actividade e, portanto, fora do exercício de prerrogativas de poder público ou que estejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.
- E assim sendo, a competência para conhecer deste pleito radica na jurisdição civil, na decorrência do disposto no art. 649 CPCivil e, concretamente, na Instância Local Cível de Mirandela.
- Ao considerar a competência do foro administrativo, o acórdão recorrido fez errada interpretação e aplicação dos normativos supra aludidos, pelo que deve ser revogado e, Consequentemente, declarada a competência dos Tribunais comuns
Nas contra alegações a Ré pugna pela improcedência do recurso interposto.
O Ex° Procurador Geral-Adjunto emitiu parecer no sentido da improcedência do recurso, mantendo-se a decisão impugnada.
II A única questão a decidir no âmbito do presente recurso é a de saber a quem incumbe a competência material para conhecer do petitório, se o Tribunal Judicial se o Tribunal Administrativo.
Mostra-se assente com interesse para a economia da decisão a seguinte factualidade:
- No dia 10 de Maio de 2013 pelas 21, 45, o Autor conduzia o seu veículo de matrícula ………., no sentido sul-norte, ……., pela auto-estrada …..
- A aludida auto-estrada tem um separador central em toda a sua extensão e dispõe de duas faixas de rodagem em cada sentido de trânsito, sendo cada uma das hemi-faixas de rodagem separadas por risco descontínuo.
- Na zona de ……….., a estrada encontrava-se em obras de manutenção, com sinalização temporária e dispositivos complementares no sentido …………..
- O trânsito no local processava-se nos dois sentidos pela faixa de rodagem do lado direito da auto-estrada, atento o sentido ……………, com um separador provisório das duas hemi-faixas de rodagem.
- No local onde terminavam as obras e os veículos retomavam a sua faixa de rodagem no sentido de …………., foram colocadas barreiras new jersey móveis em material plástico, de cor branca e vermelha.
- Ao Km 140.100 três dessas barreiras encontravam-se tombadas em plena hemi-faixa de rodagem à direita, por onde o Autor circulava, obstruindo a passagem de qualquer veículo automóvel.
- O Autor veio a embater com o veículo nas referidas barreiras.
- A C……………., SA, é a sociedade a quem foi adjudicada pela D……….., SA, a subconcessão para a concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, exploração e conservação, do lanço de auto estradas e conjuntos viários associados, designada por Subconcessão Auto-estradas …………;
- No âmbito da referida subconcessão, a ré B……………., SA, é a sociedade que foi contratada pela subconcessionária C……………., SA, para, nos termos do Contrato de Operação e Manutenção lhe prestar serviços de Conservação e Exploração, nos termos ali definidos e no Contrato de Subconcessão, em particular os enunciados nos números 48 a 64 do referido Contrato;
- No Contrato de Subconcessão celebrado entre D………….., SA (Concedente) e C……………….., SA (Subconcessionária) consta do ponto 7.1. que a Subconcessionária deve desempenhar as actividades subconcessionadas de acordo com as exigências de um regular, contínuo e eficiente funcionamento do serviço público e adoptar, para o efeito, os melhores padrões de qualidade disponíveis em cada momento;
- Refere-se ainda no ponto 27 do mesmo contrato que “a Subconcessionária é responsável pelo financiamento, concepção, projecto, duplicação, aumento, do número de vias, reabilitação, construção, exploração, conservação e operação dos Lanços referidos no número 6.1. respeitando os estudos e projectos aprovados nos termos dos números seguintes e o disposto no Contrato de Subconcessão”;
- O ponto quilométrico (PK) 140,100 da ….. onde, em 10/05/2013, ocorreu o acidente a que os autos se referem, integra a referida subconcessão.
Vejamos então.
A competência dos tribunais em geral é a medida da sua jurisdição, o modo como entre eles se fracciona e reparte o poder jurisdicional, que tomado em bloco, pertence ao conjunto dos tribunais, cfr Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1976, 88 e 89.
Desta definição, podemos passar para uma classificação de competência, a qual em sentido abstracto ou quantitativo, será a medida da sua jurisdição, ou seja a fracção do poder jurisdicional que lhe é atribuída, ou, a determinação das causas que lhe cabem; em sentido concreto ou qualitativo, será a susceptibilidade de exercício pelo tribunal da sua jurisdição para a apreciação de uma certa causa, cfr Manuel de Andrade, ibidem e Miguel Teixeira de Sousa, A Competência e Incompetência dos Tribunais Comuns, 7.
Assim, a incompetência será a «insusceptibilidade de um tribunal apreciar determinada causa que decorre da circunstância de os critérios determinativos da competência não lhe concederem a medida da jurisdição suficiente para essa apreciação.
Infere-se da lei a existência de três tipos de incompetência jurisdicional: a incompetência absoluta, a incompetência relativa e a preterição do tribunal arbitral.», cfr Miguel Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, 2ª edição, 128.
In casu, a questão suscitada, prende-se com a incompetência absoluta do Tribunal recorrido, em razão da matéria.
Dispõe o normativo inserto no artigo 66° do CPCivil (em consonância com o artigo 211º da CRP «Os tribunais judiciais são os tribunais comuns em matéria cível e criminal e exercem jurisdição em todas as áreas não atribuídas a outras ordens judiciais.») «São da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional.», acrescentando o artigo 67° «As leis de organização judiciária determinam quais as causas que, em razão da matéria, são da competência dos tribunais judiciais dotados de competência especializada.».
Neste conspectu, convém fazer apelo ao artigo 1º, nº 1 do ETAF no qual se predispõe «Os tribunais da jurisdição administrativa e fiscal são os órgãos de soberania com competência para administrar a justiça em nome do povo nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas e fiscais.», estando elencadas no artigo 4º, nº 1 de tal diploma, as questões que, nomeadamente, são da competência de tais Tribunais.
Quererá isto dizer que a intervenção dos Tribunais Administrativos se justificará se houver que dirimir conflitos de interesses públicos e privados no âmbito de relações jurídicas administrativas, isto é, o que importará para declarar a competência daqueles Tribunais é saber se o conflito entre as partes nestes autos, é um conflito de interesses públicos e privados e se este mesmo conflito nasceu de uma relação jurídica administrativa.
Não obstante as questões enunciadas no supra mencionado normativo sejam meramente exemplificativas, das mesmas poder-se-á retirar a ratio para o enquadramento de outras que ali não vêm expressamente consignadas, mas cuja ambiência seja suficiente para «atrair» a competência dos Tribunais do foro administrativo o que significa que a mera presença da Administração, como contraente num contrato, não é suficiente para qualificar o mesmo de «administrativo», uma vez que, apesar deste se destinar à «(...) realização de um resultado ou interesse especificamente protegido no ordenamento jurídico, se e enquanto se trata de uma tarefa assumida por entes da própria colectividade, isto é de interesses que só têm protecção específica da lei quando são prosseguidos por entes públicos – ou por aqueles que actuam por “devolução” ou “concessão” pública (...)» procura-se trazer ainda «(...) para o direito administrativo todos os contratos que tragam marcas – importantes e juspublicisticamente protegidas (específica ou exclusivamente) – de administratividade (...)», cfr E. de Oliveira, CPAdministrativo Anotado, 2ª edição, 811.
O art. 4.° do ETAF discrimina, nas diversas alíneas, qual o objecto dos litígios que compete apreciar pela jurisdição administrativa (e fiscal), especificando na sua alínea i) que são da competência dos tribunais administrativos os litígios sobre a “responsabilidade civil extracontratual dos sujeitos privados, aos quais seja aplicável o regime específico da responsabilidade do Estado e demais pessoas colectivas de direito público”.
Daqui decorre, além do mais, que se terá de apurar quais as circunstâncias em que um sujeito de direito privado assume o regime específico da responsabilidade civil extra contratual do ente público.
Tendo em atenção a eclosão que deu origem aos presentes autos, o acidente ocorrido em 10 de Maio de 2013 na auto-estrada ….. da qual é concessionária a Ré, aqui Recorrida, importa convocar o preceituado no artigo 1°, n° 5, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro que aprovou o Regime de Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e Demais Entidades Públicas, onde se predispõe que “As disposições que, na presente lei, regulam a responsabilidade das pessoas colectivas de direito público, bem como dos titulares dos seus órgãos, funcionários e agentes, por danos decorrentes do exercício da função administrativa, são também aplicáveis à responsabilidade civil de pessoas colectivas de direito privado e respectivos trabalhadores, titulares de órgãos sociais, representantes legais ou auxiliares, por acções ou omissões que adoptem no exercício de prerrogativas de poder público ou que sejam regulados por disposições ou princípios de direito administrativo”.
Assim e ex adverso do que vem porfiado pelo Autor/Recorrente no sentido de que «na perspectiva do demandante, este acidente se ficou a dever ao aparecimento inopinado de barreiras sinalizadoras em plena faixa de rodagem e fora do local onde deveriam estar, facto esse decorrente da omissão por parte da demandada dos seus deveres de fiscalização e manutenção da via em bom estado de modo a não fazer perigar os seus utentes, ao cometer esta omissão a ré não está munida de qualquer ius imperii, antes pratica actos que se enquadram no seu objecto social enquanto pessoa colectiva de direito privado que é. Pelo que o ilícito que é imputado à Ré e pelo qual é demandada nesta acção se insere nos actos correntes da sua actividade e, portanto, fora do exercício de prerrogativas de poder público ou que estejam reguladas por disposições ou princípios de direito administrativo.», as normas insertas naquele supra mencionado diploma, reguladoras da concessão e indicadoras dos correspectivos deveres, atestam a se, a natureza pública das actividades desenvolvidas pela concessionária, cfr inter alia neste sentido os Ac deste mesmo Tribunal, de 25 de Fevereiro de 2015 (Relator João Camilo), 7 de Maio de 2015 (Relator Leones Dantas) e de 7 de Maio de 2015 (Relatora Ana Paula Portela), in www.dgsi.pt.~
Assim, não obstante as entidades concessionárias sejam entidades privadas, se são chamadas a colaborar com a Administração Pública na concepção, projecto, construção, aumento do número de vias, financiamento, manutenção e exploração dos lanços de auto-estrada e conjuntos viários associados, fazem-no na execução de tarefas administrativas, mediante a prévia celebração de um contrato administrativo e têm a sua actividade regulada e submetida a disposições e princípios de direito administrativo.
Uma vez que na tese do Recorrente o acidente que constitui o facto complexo integrante da causa petendi, se ficou a dever ao aparecimento inopinado de barreiras sinalizadoras em plena faixa de rodagem e fora do local onde deveriam estar, facto esse, ainda na tese daquele mesmo Recorrente, que proveio da omissão por parte da Ré/Recorrida dos seus deveres de fiscalização e manutenção da via em bom estado de molde a não fazer perigar os seus utentes, tal omissão, nesta leitura particular da colaboração que é exigida por via do contrato de concessão (subconcessão) integra a prática, por omissão, de actos que se enquadram na sua função de pessoa colectiva de direito privado mas submetida a disposições ou princípios de direito administrativo, de onde as sobreditas omissões que lhe são imputadas, não poderem ser subsumidas a uma qualquer qualificação privatística, mantendo a sua natureza pública, cfr neste sentido toda a jurisprudência recente deste Tribunal de Conflitos, vg a já assinalada e ainda os Ac de 27 de Março de 2014 (Relator Gonçalves Rocha) e 9 de Dezembro de 2014 (Relator Salreta Pereira), in www.dgsi.pt.
III Destarte, julga-se improcedente o Recurso interposto, mantendo-se a decisão plasmada no Acórdão recorrido, com a atribuição da competência material aos Tribunais Administrativos.
C
sexta-feira, 27 de novembro de 2015
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